quarta-feira, abril 02, 2008

E crítica no Público!

...e a Terra terá tremido?

A Semana Santa foi ocasião para dois concertos de temática cristã, envolvendo agrupamentos musicais e canstelações sonoras contrastantes. No CCB, tivemos o Stabat Mater de Luigi Boccherini (versão de 1871) interpretado por Enrico Onofri à frente do Divino Sospiro, especializado em música barroca; foi precedido pela estreia absoluta do Stabat Mater de Eurico Carrapatoso, encomendado para esta ocasião, com a Orchestrutopica e o Grupo Vocal Olisipo, sob a direcção de Cesário Costa. Em S. Vicente de Fora, pudemos ouvir instrumentistas das orquestras Metropolitana de Lisboa e Académica Metropolitana, sob a batuta de Michael Zilm, tocar uma obra de 1964 de Olivier Messiaen, Et expecto resurrectionem mortuorum; e escutamos ainda (entremeado com a orquestra) o Coro Gregoriano de Lisboa, dirigido por Helena Pires de Matos, cantar um próprio gregoriano da Missa. Este coro, seja pela qualidade individual das vozes, seja pela justeza dos tempo, pelo equilíbrio do fraseado ou pela adequada leitura rítmica dos neumas, apresentou com inexcedível dignidade ou cânticos que tradicionalmente pontuavam a Missa de Páscoa. Fazê-lo na noite de Quinta-feira santa é litúrgicamente impróprio, mas porque se deveria exigir aos promotores de concertos uma sensibilidade litúrgica hoje rara na igreja?
Na obra de Messiaen, os percussionistas e e instrumentistas de sopro da Metropolitana foram notáveis, embora a sincronia de ataques entre metais e madeiras, reconhecidamente difícil de obter, não fosse de início perfeita. A direcção simultâneamente calma e incisiva de Zilm logrou obter, em todo o caso, um efeito transparente e poderoso. A música de Messiaen, invulgarmente colorida e abrangente, de ex+ressão ora agreste, ora excitante, ora reparadora, continua a interprlar-nos o imaginário. Como diz o ofertório gregoriano, agora cantado, com essa evocação da ressurreição " a terra estremeceu e ficou em paz".
Mas teremos nós, na noite anterior estremecido? Terá havido estranheza e comoção? Visceral mobilização? Houve, decerto, beleza a rodos: em doses intermitentes, no Stabat Mater de Boccherini; em doses mais fluentes, no de Carrapatoso. A partitura mais antiga, que justapõe secções inspiradas com outras algo rotineiras, foi executada com esmero e com invulgar atenção ao detalhe; a meio-soprano búlgara Alexandrina Pendatchanska destacou-se pela beleza do timbre e pela capacidade de contrastação dinâmica, mas revelou-se uma escpolha problemática como solista no capítulo da dicção (as palavras mal se percebiam) e da emissão vocal a partir do mezzo-forte (vibrato indistinguível de um trilo). Em contrapartida não houve nada de negativo a apontar à realização sonora do Stabat Mater de Carrapatoso: os músicos da Orchestrutopica estiveram ao melhor nível, com o Grupo Vocal Olisipo, e o barítono Armando Possante (também director do Olisipo, e um dos solistas gregorianos do concerto de quarta-feira) foi um solista excelente. A coesão do conjunto, a justa percepção dos detalhes da textura e da orquestração, deve-se ao cuidado posto nesta obra pelo maestro Cesário Costa, ajudado por um compositor que faz gala em escrever clara e detalhadamente. (...) O resultado é lindo. (...)

Manuel Pedro Ferreira

terça-feira, abril 01, 2008

Crítica no Expresso

Homenagem às mães dolorosas

Estreia no CCB do "Stabat Mater" de Eurico Carrapatoso

PontoContraPonto é uma das iniciativas mais interessantes do CCB: o convite à descoberta dos contrastes e paralelos entre duas obras com algo de comum, executadas no mesmo concerto. Desta vez a comparação era entre dois Stabat Mater: o de Eurico Carrapatoso (n. 1962) - uma encomenda do CCB em estreia absoluta - e o de Luigi Boccherini (1743 - 1805), composto em 1781; o primeiro tocado pela Orchestrutopica e o segundo pelo Divino Sospiro - as duas orquestras residentes (outra iniciativa louvável) do CCB. Foi, a quase todos os níveis um concerto perfeito.
(...)Em 1801 (Boccherini) compôs uma nova versão do Stabat Mater com mais dois solistas (contralto e tenor), "para evitar a monotonia duma única voz". Mas o perigo da monotonia não existe quando a cantora é do calibre de Alexandrina Pendatchanska - um soprano de voz cálida e apurada técnica que encantou o público que enchia o palco do CCB. O ambiente claustrofóbico e de luto negro dos bastidores quadrou-se bem com esta versão devota e íntima, às vezes ciciada da obra de Boccherini. Pendatchanska coloriu primorosamente o texto medieval, encontrou uma voz moribunda para o "Quando corpus morietur" e rematou brilhantemente, num crescendo cada vez mais claro, os Amens finais. Muito bonita prestação do Divino Sospiro sob a direcção de Enrico Onofri (embora às vezes eu tivesse preferido uma leitura menos arrastada).
Ainda mais notável foi a estreia do Stabat Mater de Carrapatoso - uma variante mais profana, com um soneto de Camões ("Dece do Ceo imenso Deus benino") bem pregado na cruz do texto tradicional. Não se perde uma sílaba (ao contrário do que acontece em Boccherini) e os tímbres das notas refulgem individualmente: a música de Carrapatoso faz a apologia do texto, da melodia e da tonalidade. À frente da Orchestrutopica, Cesário Costa continua a afirmar-se como o nosso melhor (e mais versátil) maestro. A obra começa no trompete (excelente António Quítalo), seguindo-se uma sequência de notas soltas no piano, quais sete lágrimas ou dores cravadas no coração de todas as mães. Há solos plangentes do violoncelo (Marco Pereira), intervenções apocalípticas da trompa, cordas percutidas do contrabaixo e o estilo declamado e homofónico do barítono solista, o excelente Armando Possante (também director do Grupo Vocal Olisipo, encarregado da parte coral). Este Stabat Mater vive dos contrastes entre as notas soltas do piano ou da percussão e o fluir untuoso das cordas e metais. Um dos prazeres maiores é a descoberta de translacções e simetrias - as intervenções do piano (Elsa Silva), a espiritualidade do falsete dos fins das estrofes, etc. A simetria maior é a do próprio tema: um Deus que se fez homem para que o homem pudesse ascender ao divino. Ou, no estro de Camões, "Se o homem quis ser Deus, que Deus seja homem."

Jorge Calado